O REI LEÃO (2019)
A indústria de cinema deste século descobriu a fórmula monetária do remake e são já várias as adaptações e interpretações correntes de filmes do século passado. Regra geral, esta abordagem de produção não tem dado frutos, porque a essência de um filme reside invariavelmente no facto de ser um produto, ainda que transmitido, que não pode ser mudado por quem a recebe: é uma mensagem unilateral - que permite interpretações -, mas que existe, num primeiro ponto, como é e por si só. A Disney, porém, encontrou um espaço criativo que o resto do mercado não possui: a adaptação de filmes cuja relação com o público se sustém sobretudo na memória afetiva de infância. Ou seja, a transmissão de um produto que identificamos como algo distante, como algo que é por si só, mas cujo valor reside com a relação que estabelece connosco e com a nossa própria formação.
O problema deste argumento - ou melhor, a sua falha - tem que ver com o facto de que, se um filme é um produto único, a relação que se estabelece com ele é também única; e a nossa memória afetiva, ainda que invocada e sensibilizada, não o identifica como aquilo a que ele originalmente se refere. Para responder a isto, a Disney propôs-se a fazer adaptações não literais: que remetem, que respeitam, mas que têm a própria forma de ser, o próprio significado. Afinal, são também estes filmes produtos próprios.
O Rei Leão (2019) é a mais recente proposta da Disney. Depois de adaptações como O Livro da Selva (2016), A Bela e o Monstro (2017) ou Alladin (2019), o eterno estúdio de animação apresentou uma versão digital, extremamente realista e adaptada à natureza, inspirada na aclamada longa-metragem de 1994. Num trabalho visual estrondoso, a Disney volta a embarcar, agora sobre a realização de Jon Favreau (Iron Man), na árdua tarefa de transformar o coração em verdade.
O Rei Leão de 1994 foi um filme infantil com valores e significados bem definidos. Tinha uma força pedagógica muito grande, tal como a generalidade dos filmes do estúdio — nas lições que ensina a um jovem leão que, mesmo crescido, pela carência de uma certa força de afirmação, é a criança que com ele aprende — e um viés político indeclinável — não tivesse ele sido produzido nos anos 90, perante o combate cultural do Ocidente ao totalitarismo ideológico do século que se se arrastava desalentadamente pelo leste europeu. Foi, no seu âmago, uma obra à liberdade, à ordem e ao indivíduo: um produto dos valores da sociedade que o criou.
Este O Rei Leão é também um produto do seu tempo. Utilizando a fórmula já testada (com sucesso) pela Disney e com consideração por uma maior necessidade, ou habituação cultural, que o público atual tem da imagem real, a longa-metragem de 2019 apresenta uma proposta de respeito pela homóloga e envolve-se num complexo processo de converter aquilo que a imaginação constrói num universo de possibilidades irrestritas (o do desenho) num em que as regras estão estipuladas. Este processo permite e constrange, simultaneamente: a adaptação permite ao filme o seu lado mais interessante, que é a visualidade, e, ao mesmo tempo, prejudica-o. O Rei Leão de 2019 é visualmente extraordinário e representa um dos trabalhos de melhor execução da Disney no novo plano de adaptações: insere a história num ambiente que a original não permite, porque apresenta África como ela é, e adequa muitos planos do original, enquanto cria novos que deixam uma marca visual fortíssima. Na verdade, as soluções visuais que o filme encontra para moldar a liberdade criativa do desenho original são notáveis e o empenho no detalhe, na posição, na luz e noutros detalhes técnicos aproximam a longa-metragem a uma linguagem de programa de vida selvagem. Mas essa visualidade, de que tanto depende o filme e que lhe permite fazer a transição do animado para o aparentemente real, condiciona-o na dimensão da sua história — O Rei Leão é uma trama de perda, de vingança, de tristeza e de afirmação, e os protagonistas são animais expressivos. Choram, sorriem, demonstram emoções faciais naturais do ser humano, e o exercício de personificação — de transfiguração de um animal em uma criatura com uma história empática — está umbilicalmente ligado à própria transmissão de sentimento. A proximidade à visualidade real transtorna a expressividade dos animais, que é reduzida ao que a própria natureza possibilita.
A verdade é que O Rei Leão é um filme próprio. O respeito pelo original é evidente e marcado sobretudo pela fidelidade de várias sequências, de vários planos, da narrativa e de muito do trabalho criativo desenvolvido na versão de 1994. Mas a liberdade de produção abriu um espaço de propostas que diferem do original. Scar é talvez o melhor exemplo: a longa-metragem de 2019 apresenta um vilão menos exuberante e mais introspetivo — menos charmoso e mais rancoroso, o que funciona dentro da trama, mas faz perder traços característicos que a história original tão bem definiu. A carga política que marcava o seu capítulo d'O Rei Leão de 1994 mantém-se dentro dessa lógica: a esta versão não interessa a marcha de ganso das hienas ou o líder que as observa num púlpito de rocha; interessa, antes, o discurso lodeiro e convulsivo de um fanático sombrio. O frenético e irónico Be Prepared de 1994 (ou, em português, Preparados) foi também substituído por uma rendição mais discursiva, conspiradora e subversiva. Os propósitos da modificação são justificáveis: se este é um Scar diferente, a divergência na personalidade dificilmente sustentaria a sumptuosa atuação do original, que diz respeito a um outro Scar.
E, nesse aspeto, este O Rei Leão acerta. A personalidade própria das suas próprias personagens está bem escrita, é bem desenvolvida e o problema que eventualmente emerge não advém da originalidade que o filme tenta propor. Antes, tem que ver com uma questão levantada no início: a relação do público com o primeiro, especialmente do público que cresceu com a longa-metragem de 1994 e procura nesta uma referência atual e refrescada, é, de certa forma, tão umbilical, tão indissociável e tão marcadora do conceito e das expectativas que esse espectador tem da história, que as propostas de alteração, por mais criativas e funcionais, são fatalmente fugazes. Timon e Pumba são divertidíssimos (o melhor do filme), e a relação entre os dois, o Hakuna Matata, o humor estão lá — mas eles não são o Timon e o Pumba. São como reflexos, tecnologicamente surpreendentes, mas cuja essência — que inevitavelmente depende da animação — não está presente. E isto é o novo O Rei Leão: visualmente notório, bem escrito, bem desenvolvido, mas terrivelmente inane. Despojado de essência, de alma, dá a impressão de que, se fosse um filme original, se a referência que formou gerações não existisse, seria outro filme. No fim, O Rei Leão é o seu próprio problema, e não há qualquer problema nisso: entretém, recorda velhas músicas, e funciona sobretudo para um público cujo registo do primeiro é escasso. Tem alegria e pode ter significado. Depende, claro, do que se quer encontrar no filme — e do que se está disponível a, sob pena de profunda atonia e melancolia, não encontrar.
Este O Rei Leão é também um produto do seu tempo. Utilizando a fórmula já testada (com sucesso) pela Disney e com consideração por uma maior necessidade, ou habituação cultural, que o público atual tem da imagem real, a longa-metragem de 2019 apresenta uma proposta de respeito pela homóloga e envolve-se num complexo processo de converter aquilo que a imaginação constrói num universo de possibilidades irrestritas (o do desenho) num em que as regras estão estipuladas. Este processo permite e constrange, simultaneamente: a adaptação permite ao filme o seu lado mais interessante, que é a visualidade, e, ao mesmo tempo, prejudica-o. O Rei Leão de 2019 é visualmente extraordinário e representa um dos trabalhos de melhor execução da Disney no novo plano de adaptações: insere a história num ambiente que a original não permite, porque apresenta África como ela é, e adequa muitos planos do original, enquanto cria novos que deixam uma marca visual fortíssima. Na verdade, as soluções visuais que o filme encontra para moldar a liberdade criativa do desenho original são notáveis e o empenho no detalhe, na posição, na luz e noutros detalhes técnicos aproximam a longa-metragem a uma linguagem de programa de vida selvagem. Mas essa visualidade, de que tanto depende o filme e que lhe permite fazer a transição do animado para o aparentemente real, condiciona-o na dimensão da sua história — O Rei Leão é uma trama de perda, de vingança, de tristeza e de afirmação, e os protagonistas são animais expressivos. Choram, sorriem, demonstram emoções faciais naturais do ser humano, e o exercício de personificação — de transfiguração de um animal em uma criatura com uma história empática — está umbilicalmente ligado à própria transmissão de sentimento. A proximidade à visualidade real transtorna a expressividade dos animais, que é reduzida ao que a própria natureza possibilita.
A verdade é que O Rei Leão é um filme próprio. O respeito pelo original é evidente e marcado sobretudo pela fidelidade de várias sequências, de vários planos, da narrativa e de muito do trabalho criativo desenvolvido na versão de 1994. Mas a liberdade de produção abriu um espaço de propostas que diferem do original. Scar é talvez o melhor exemplo: a longa-metragem de 2019 apresenta um vilão menos exuberante e mais introspetivo — menos charmoso e mais rancoroso, o que funciona dentro da trama, mas faz perder traços característicos que a história original tão bem definiu. A carga política que marcava o seu capítulo d'O Rei Leão de 1994 mantém-se dentro dessa lógica: a esta versão não interessa a marcha de ganso das hienas ou o líder que as observa num púlpito de rocha; interessa, antes, o discurso lodeiro e convulsivo de um fanático sombrio. O frenético e irónico Be Prepared de 1994 (ou, em português, Preparados) foi também substituído por uma rendição mais discursiva, conspiradora e subversiva. Os propósitos da modificação são justificáveis: se este é um Scar diferente, a divergência na personalidade dificilmente sustentaria a sumptuosa atuação do original, que diz respeito a um outro Scar.
E, nesse aspeto, este O Rei Leão acerta. A personalidade própria das suas próprias personagens está bem escrita, é bem desenvolvida e o problema que eventualmente emerge não advém da originalidade que o filme tenta propor. Antes, tem que ver com uma questão levantada no início: a relação do público com o primeiro, especialmente do público que cresceu com a longa-metragem de 1994 e procura nesta uma referência atual e refrescada, é, de certa forma, tão umbilical, tão indissociável e tão marcadora do conceito e das expectativas que esse espectador tem da história, que as propostas de alteração, por mais criativas e funcionais, são fatalmente fugazes. Timon e Pumba são divertidíssimos (o melhor do filme), e a relação entre os dois, o Hakuna Matata, o humor estão lá — mas eles não são o Timon e o Pumba. São como reflexos, tecnologicamente surpreendentes, mas cuja essência — que inevitavelmente depende da animação — não está presente. E isto é o novo O Rei Leão: visualmente notório, bem escrito, bem desenvolvido, mas terrivelmente inane. Despojado de essência, de alma, dá a impressão de que, se fosse um filme original, se a referência que formou gerações não existisse, seria outro filme. No fim, O Rei Leão é o seu próprio problema, e não há qualquer problema nisso: entretém, recorda velhas músicas, e funciona sobretudo para um público cujo registo do primeiro é escasso. Tem alegria e pode ter significado. Depende, claro, do que se quer encontrar no filme — e do que se está disponível a, sob pena de profunda atonia e melancolia, não encontrar.
Francisco Fernandes
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