EX MACHINA (2014)
Texto originalmente publicado no jornal Ponto & Vírgula da Escola Secundária Engenheiro Acácio Calazans Duarte (2014-2017)
«Se criaste uma máquina consciente, não se trata da história dos homens. Trata-se da história dos deuses», responde o protagonista Caleb (Domhnall Gleeson) ao enigmático Nathan (Oscar Isaac), quando este lhe disse que, caso a sua experiência funcionasse, estaria a presenciar o maior evento da história da humanidade. É este o propósito de Ex Machina (2014), o primeiro trabalho de realização do britânico Alex Garland: um multimilionário, eremita e génio da programação de computadores, Nathan, convida um tímido jovem, dotado também de grande habilidade tecnológica, Caleb, para ser parte de um teste inovador, dado que Nathan criara um robot de inteligência artificial, apelidado de Ava (Alicia Vikander), com corpo, raciocínio e capacidades cognitivas e deseja que Caleb aplique o teste de Turing, que testa a capacidade de uma máquina de se comportar como um ser humano.
Embora Ex Machina tenha como base um material muito teórico, a tecnologia inerente à história não sobrecarrega, em momento algum, os diálogos ou o entendimento do que está a acontecer. É um dos principais méritos de Alex Garland, experiente argumentista — há uma construção paciente de um clímax à volta das interações dos personagens, ora a interação humana, entre Nathan e Caleb, ora a interação de homem com máquina, entre Caleb e Ava. O facto do círculo de personagens ser tão reduzido, até porque não parece haver tempo para perder com histórias paralelas, só beneficia o desenvolvimento dos personagens. O triângulo torto das relações entre as três principais figuras parece distorcer-se progressivamente com o avanço dos dias; não há uma compreensão exata sobre o que Nathan pretende, sobre o que Caleb vai fazer ou sobre o que Ava realmente é. Essa nebulosidade é importantíssima para o embate no espectador das ações de qualquer um deles e o fio da história, notoriamente preocupado com a direção meticulosa dos diálogos, é sempre conduzido de forma sensata e abstémia, sem cair na mesmice ou na vulgaridade que as ficções-científicas cada vez mais admiram.
Ex Machina tem ainda o mérito de compreender a sua própria filosofia. Não é só um filme sobre tecnologia; é um filme sobre humanidade. O contraste persistente entre a tecnologia e a natureza, entre a trivialidade no discurso humano e a formalidade de Ava, entre a claustrofobia do cinza e a liberdade do verde, entre o prestígio da criação e descontrolo do criado, destacam-se como o principal objeto de observação na película. Há de facto virtude na capacidade técnica da realização, da fotografia — o filme é enquadrado constantemente em planos americanos ou médios, sempre simétricos — e dos efeitos visuais, mas é só a transposição do brilhantismo do argumento para o ecrã, auxiliado ainda por uma magnífica banda sonora, que sabe sempre quando se deve deslizar pela quietude do momento ou agitá-la com aspereza no som.
Pegando num assunto que nos é tão familiar, a tecnologia, o filme cumpre perfeitamente a sua missão e com excelência, através da exploração da humanidade dos personagens e da cultivação da dúvida no espectador. É perspicaz, perturbador e tem uma genuinidade poética. Chama-nos a atenção por parecer interessante e termina a deixar-nos perplexos e a aproveitar o ápice do momento da melhor forma, num silêncio perfeito.
Francisco Fernandes
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