TABU (2012)



























Texto originalmente publicado no jornal Ponto & Vírgula da Escola Secundária Engenheiro Acácio Calazans Duarte (2014-2017)

Tabu é um filme português de 2012, realizado por Miguel Gomes, que homenageia a obra homónima de F. W. Murnau, de 1931. A longa-metragem invoca constantemente características do cinema mudo dos anos 20/30, tanto na forma como ela foi gravada (em 16mm), como no invulgar formato de 4:3 ou no simples facto de ser a preto e branco.

Embora a realização e a cinematografia do filme sejam notáveis, especialmente pela capacidade de recriação de um ambiente saudoso para os cinéfilos, a verdade é que Tabu, vencedor de inúmeros prémios em festivais e louvado pela crítica internacional, é uma obra no sentido completo da palavra. Desdobra-se em três partes — um prólogo, a parte Paraíso Perdido e a parte Paraíso — e cultiva a sua narrativa, linearmente, através da flutuação nos anos perdidos da principal personagem, Aurora, uma idosa instável, que vive com a sua empregada africana. Aurora (Laura Soveral) recorre, ao longo da segunda parte, Paraíso Perdido, passada na Lisboa atual, à sua solitária vizinha Pilar (Teresa Madruga), para a salvar dos próprios devaneios. E Aurora é, de facto, a personagem maior em Tabu e que define o ambiente das duas partes. Na primeira, à semelhança de Aurora, paira um ar efémero de sonho, de congeminação fugaz. Este aspeto fundamental reflete-se, com maestria, na cinematografia e na arte do filme; na colocação de luzes para passar uma impressão de fantasia, ou na rotatividade de uma mesa de casino, enquanto Aurora conta um sonho a Pilar, para transmitir a ideia de fugacidade e divagação. 


Com o decorrer das circunstâncias, Pilar é levada a conhecer Gian Luca Ventura (Henrique Espírito Santo), que lhe conta a história de vida de Aurora, com a qual a sua se confunde. E começa aí a terceira parte do filme, Paraíso, onde ocorre um transporte para o passado, para uma colónia portuguesa em África. É possível dizer que esta parte é a mais importante, por se explicar nela a essência de Aurora, e, consequentemente, de toda a segunda parte. Além disso, é com a terceira parte que o prólogo mais se identifica. No prólogo, o filme introduz o assunto definitivo da história: o amor de perdição, através da curta história de um «intrépido explorador», que comanda um grupo de escravos na exploração dos longos campos africanos. Essa temática não é só uma tradição lusitana na literatura; em Tabu, a atmosfera que se desenvolve pela ação direta ou indireta das personagens tem motivação no que é referido na longa-metragem como «o mais insolente músculo de toda a anatomia», o coração. Contudo, não deixa de ser curioso que uma das principais figuras do filme, o crocodilo, seja comummente interpretado como agente do mal, da ausência do coração. Em Tabu, o crocodilo tem um significado essencial e que se estende desde o prólogo, passado há, pelo menos, um século, até à terceira parte, que se passa pouco antes do início da guerra do ultramar. O crocodilo é um agente neutro, mas inelutável, como um presságio fatalista — é a figura da inevitável consumação pestífera da tragicidade, ligado incontornavelmente à morte. Contudo, na mitologia egípcia, o deus crocodilo Zabek era sinal de fertilidade. E em Tabu existe também essa dualidade: o crocodilo de Aurora é ainda a principal ligação entre ela e o pai da sua filha, e, ao mesmo tempo, o homem com que mantém uma relação extraconjugal. Mais uma vez, a forma como Aurora existe e é, delineia o ambiente da própria parte.


Mas África não serve só como pano para o desenrolar da história trágica e marcante de Aurora. África, na inteligente ótica de Miguel Gomes, representa a credulidade dos tempos antigos, especialmente na forma como marcam a imagem dos personagens que lá habitaram, e na forma como o novo século e a nova vida, em Lisboa, é tristemente vaga. Através da exploração do filme mudo na terceira parte, o que é obviamente uma referência ao saudosismo, tanto dos personagens, como do próprio realizador, pelo antigo, da utilização de músicas dos anos sessenta, e do mergulho ingénuo de Aurora na inconsequente vileza do amor, África representa a calmaria, a bonança de uma vida abastada onde as coisas sabiam bem, onde a confiança era um suporte tangível e a imagem credível.
E após essa África, esse Paraíso, nada restou no Paraíso Perdido a não ser a frustração existencial de Aurora e Gian Luca, a desconfiança e a vaguidade de um mundo a que não se pertence, porque não se o viu chegar, onde as coisas fogem sob uma urbana desatenção, onde não é possível parar para admirar uma paisagem, onde a imagem é fugidia; um Paraíso Perdido que constitui um cemitério de lembranças, invadido pela decepção do passado e da paixão queimada. 


Tabu é um projeto incrível por várias razões. É um projeto para amantes de cinema e para espectadores comuns. Além de fazer uma homenagem preciosa a um clássico, garante sempre manter a sua identidade, porque não seria possível fazê-lo de outra forma. Aliás, parece-me que seria impossível fazê-lo se não fossem todos os componentes técnicos que invocam a década de trinta. 
É uma profunda história de amor de perdição, de existencialismo frustrado, mas sobretudo de imagem. E a imagem que fica é simples — África, nos anos sessenta, com colhedores de algodão a trabalhar melancolicamente debaixo de um sol pesado, e as montanhas sob bruma lá ao longe. 


Francisco Fernandes

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