TRAINSPOTTING (1996)


Texto originalmente publicado no jornal Ponto & Vírgula da Escola Secundária Engenheiro Acácio Calazans Duarte (2014-2017)

Numa brilhante cena a meio de Trainspotting, Renton, o personagem principal, queixa-se de ser escocês, argumentando que o seu povo é “o lixo mais desprezível, miserável, servil e patético” da civilização. Por entre tropeços linguísticos, sotaque acirrado e um visual muito próprio (não tivesse sido ele feito nos anos 90), o filme acaba por expor o contrário: é felizmente escocês.
  
Trainspotting é um filme escocês de 1996, realizado por Danny Boyle, baseado no livro de Irvine Welsh, sobre um grupo de amigos toxicodependentes que vivem em Edimburgo, Escócia. Protagonizado por Ewan McGregor, que retrata Renton, o personagem principal e narrador do filme, Trainspotting conta ainda com Ewen Bremner, Jonny Lee Miller, Kelly Macdonald e Robert Carlyle. Em fevereiro deste ano estreará nos cinemas a aguardada sequela do filme, Trainspotting 2.

Se a década de 90 foi fenomenal para o cinema enquanto arte, não o foi para o espírito humano. Pairava, tal como paira na atmosfera de Trainspotting, um ar de vaguidade perturbante, resultado de uma mudança social drástica, do fracasso das ideologias, da proliferação do consumismo como estilo de vida. A grandiosidade do passado, consequência das grandes lutas e das grandes conquistas, fora reduzida a uma filosofia de distração, fosse ela monetária, virtual ou, no caso exposto pelo filme, narcótica. A crítica inerente ao filme de uma sociedade burocratizada, de uma classe média elipticamente aborrecida, de uma mediocridade política e cultural generalizada, é, no fundo, o estado espírito dos personagens, e por essa razão Trainspotting consegue estabelecer uma relação tão intrínseca e justificativa entre a sociedade (a que fazemos, naturalmente, parte) e os jovens toxicodependentes. 


Quando Darwin falou em adaptação, era um conceito estritamente biológico — a interpretação social veio depois. Trainspotting é uma análise turbulenta e assombrosa acerca da adaptação humana geracional, tanto por ser um filme jovem sobre uma juventude desvirtuosa, desencaixada, desencontrada, como porque a marginaliza de tal forma que a torna um reflexo deformado de si mesma. Porque a geração que retrata é terrivelmente dissentida; só acha essência na abstração que advém das drogas, só se encontra na imagem alucinogénica do seu próprio mundo, e essa dissensão é triste, é desastrosamente vazia, e, mesmo narcotizada, nunca deixa de ser consequencial. 

Em Trainspotting, o mal de que os personagens padecem é, porém, suprasocial. É um mal influenciado pelo meio social, mas é de uma substância espiritual. Além das relações humanas, além da nação escocesa, além das substâncias psicoativas, Trainspotting é a sevícia maior da consciência dos seus personagens. Não é por acaso que a verdadeira tortura, tal como Renton descreve, vem depois do consumo de droga. É algo menos linear, menos sociológico. O desencaixe dos jovens é a reprodução de uma fórmula literária espiritual famosa, a tolstoiana. Em A Morte de Ivan Ilitch, Tolstói faz o seu personagem viver uma morte viva por ter vivido uma má vida. A morte é o desfecho da vida, algo mais do que físico, e por isso dá um seguimento punitivo ao que se viveu. Em Trainspotting, tudo se passa na vida, porque é ela que interessa. Se na obra de Tolstói, Ivan só ganha consciência da sua vida durante a morte, os personagens narcóticos de Danny Boyle são mais conscientes, e o sofrimento existencial resultante das más vidas que vivem não é uma morte viva, como a de Ivan Ilitch, mas uma vida extremamente vívida. Tal como Sísifo, carregam a pedra até ao topo, invariavelmente abstraídos, apenas para vê-la regressar. A diferença reside aqui: têm perfeitamente consciência desse fado. Não há uma injeção verdadeiramente consciente, é uma ação profundamente consequencial. O infortúnio dos personagens em Trainspotting é serem, embora toxicodependentes, ardentemente lúcidos. E assim carregam a pedra mais uma vez; de novo ela cai. Fatalmente continuam. 

Francisco Fernandes

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