O que As Harmonias de Werckmeister (2000) nos diz sobre a América hoje


Varridos por protestos em múltiplas zonas do seu território, os Estados Unidos são hoje uma imagem para a história. O homicídio de George Floyd não foi só profundamente chocante; foi profundamente simbólico. À revolta que naturalmente decorre dos grandes atos de desproporcionalidade, associou-se a gravidade da imagem: mobilizadora, potenciadora, aguda e agudizadora. O pescoço sob a pressão do joelho transformou-se em imagem particular de um fenómeno muito mais amplo: em símbolo de uma natureza, de uma causa, de um objeto inexplicável. Como em Saramago, à sensibilidade de quem vê foi agora permitido, e exigido, que reparasse.

Multiplicando-se, os protestos alardearam a angústia dessa incompreensibilidade, desse fenómeno que o institucionalismo e o direito não explicam. Por detrás dela, marcham multidões ao encontro de um objetivo simultaneamente concreto e abstrato, sem entender que figura encontrariam do outro lado da marcha. Como uma serpente em brasa, os protestos arrastaram-se, mobilizando a paz e a guerra, incendiando o bom e o mau, derrubando o justo e o injusto. A este movimento efervescente a resposta não tardou e a particular violência que a outra imagem expôs levantou questões sobre a natureza destrutiva e desorientada das reivindicações que, por vezes cegas, perderam a diferenciação. Não se parece considerar, contudo, que foi justamente a ausência de diferenciação que ateou gasolina a um fogo baixo que já ardia há muito tempo.



Disso fala-nos Béla Tarr no seu monumental As Harmonias de Werckmeister (2000), inspirado no romance The Melancholy of Resistance de László Krasznahorkai. Para quem queira ver, está tudo na extraordinária cena inicial, em que János Valuska encena o sistema solar com os embriagados de um bar. Explica o Sol que ilumina a profunda escuridão do universo; mostra a Terra, que gira à sua volta, contornada pela Lua, num eterno movimento rotativo que permite a vida. Encena, por fim, o eclipse, o terrível negrume que se impõe ao planeta, plantando a indeterminação face àquilo que não se compreende. As Harmonias de Werckmeister é, entre outras coisas, sobre isso — sobre uma dimensão ininteligível da vida humana. Numa atmosfera apocalíptica, uma distante anónima cidade da Hungria socialista recebe um circo que transporta a exposição de um fenómeno da natureza, uma baleia morta, e uma figura extraordinária a que chamam Príncipe. Perturbada pela visita e pelas multidões que o circo arrastava, e imersa numa profunda perturbação social e espiritual, a cidade volve-se numa revolta motivada pela palavra messiânica do Príncipe, figura provocadora de inexplicável tumulto e agitação, perante a qual toda a vida sucumbe, como submergida num longo e inexplicável eclipse.

As Harmonias de Werckmeister não explica a natureza do ardor revoltoso da América de hoje. Não é um filme sobre preconceito, racismo, divisão social. É, sim, um profundo testamento sobre o intangível, sobre o estado de espírito em que a cidade húngara está mergulhada. O tumulto das massas excitadas pela figura do Príncipe nunca é totalmente explicado, porque não há como: nem ele nem a baleia são razões suficientes para compreender a submersão de um povo inteiro numa bruma caótica de destruição, em que o normal funcionamento social se interrompe e a discriminação entre o justo e o injusto se turva. János, a figura do humanismo, cai também vítima da marcha cega e incontrolável que os corpos incansáveis dos revoltosos não podem nem conseguem explicar. Tudo é destruído, em nome de algo que não o tem, em nome de uma figura sem cara, por um sentimento final que não se conhece: conhece-se, sim, a revolta, o sentimento de injustiça, o estado de espírito que marca aquela cidade. Não há razão pela qual a multidão entenda invadir um hospital que não seja a simples necessidade espiritual de se revoltar, de desfazer, de procurar caoticamente a face daquilo que a ela impôs aquele estado. Não me parece haver também razão que explique a revolta assoladora nos Estados Unidos senão um estado espiritual profundo, psicossocial, legado de uma velha divisão social que ainda permanece, de incompreensão e de um sentimento de injustiça dela decorrente. Não me parece haver razão para esta América senão um estado de espírito caótico, um eclipse secular inexplicável sob o qual infindáveis pessoas nasceram e hão de nascer, por força da cor da pele que os cobre, já marcados para a hostilidade, para a discriminação, para a morte. Independentemente da lei e da educação, da memória e da evolução, o eclipse permanece, injustificado. Não há nada que explique a América hoje senão a inexistência de razões: e, como em As Harmonias de Werckmeister, se o estado em que os espíritos tumultuosos vivem é caótico, o tumulto não poderia ocorrer senão caoticamente. Entre a destruição, esse eclipse espiritual encobre a humanidade, que os revoltosos reencontram quando, vandalizado o hospital, momentaneamente a bruma se liquidifica na forma indefesa de um idoso nu. Ao contrário de alguns dos seus personagens, que formam um movimento de civis e forças policiais para o restabelecimento da lei e da ordem, As Harmonias de Werckmeister não julga essa fúria ininterrupta e arrasadora; mostra-a como ela é — brutal, enfurecida, mas complexa. E sem saber fala-nos do nosso tempo e desta América que está lá, também brutal, enfurecida e complexa, num manuscrito de um revoltoso encontrado por János: «Não encontramos o objeto real da nossa repugnância e do nosso desprezo, pelo que avançamos sobre tudo o que encontramos com uma fúria cada vez mais feroz.»



Tudo regressa ao início, àquela cena seminal em que János convoca a humanidade em comunhão a compreender o universo: o Sol, a Terra, a Lua e o eclipse. A escuridão que encobre tudo o que conhecemos, tudo o que construímos e que nos construiu — lembra János — desaparecerá. A luz solar regressará e o calor invadirá novamente o planeta. O humanismo do protagonista de As Harmonias de Werckmeister não é só um traço psicológico individual: é uma humanidade possível. É uma força de esperança a que o espectador tem de regressar — ainda que o filme pareça dizer o contrário; ainda que, como o dono do bar em que o ritual é encenado, se exija o fim dessa comunhão. A ele János responde com o peso do mundo, sob a composição de Mihály Víg, pelas palavras que As Harmonias de Werckmeister pode oferecer à América de hoje: «Mas, senhor Hagelmayer, ainda não acabou.»


Francisco Fernandes

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