BACURAU (2019)
Por onde começar a falar de Bacurau (2019)? Talvez pela abertura, em que o título e os créditos surgem sobre as estrelas e, como na ficção científica, ou em Star Wars, a câmara viaja lentamente, deslocando-se na direção do mundo cuja história vai contar. O costume visual deste exercício introdutório é a primeira grande subversão de Bacurau – que encontra ponto de foco na América, desta vez, do Sul; e vai-se aproximando suavemente pela exosfera, até penetrar, pelo tempo e pelo espaço, no Nordeste brasileiro.
Sob a voz de Gal Costa, Bacurau confessa-se: eu vou fazer uma canção para ela. Uma canção para este mundo, para o Brasil, para o Nordeste, para o objeto não identificado que aquelas câmaras, suspensas no espaço por décadas, nunca chegaram a captar.
E então do espaço sideral, Bacurau transita para uma estrada perdida no meio do sertão. Esta imagem é suficientemente prolífica para ressoar em inúmeras referências culturais que já abordaram este mundo brasileiro. Mas quando falo de uma primeira grande subversão em Bacurau, falo do tremendo trabalho que é virar estas referências ao contrário; que é jogar com as regras que lhe foram estabelecidas tacitamente. Por aquela estrada longa, de alcatrão acidentado, vai um camião, pisando caixões caídos, numa marcha acelerada. Vai para Bacurau, um pequeno povoado do Nordeste que acabou de perder a sua matriarca. Como na tipologia do western, será aqui, neste espaço, neste povoado, por esta gente, que a história se desenrolará. Bacurau apresenta-o, regional, caricato, marcante como ele é, num jogo constante de oposições, de dentro e fora, de cá e de lá. Quando o pequeno povoado desaparece do mapa, numa das mais poderosas alegorias da longa-metragem – o literal apagamento de uma comunidade, que ocorre justamente após a morte da sua matriarca, do símbolo eterno do seu espírito -, os habitantes de Bacurau, a terra do pássaro brabo, são colocados perante a iminência de um inimigo externo, inidentificável, anónimo, fantasmagórico. Essa mão sem forma, essa sombra sem corpo, tem uma única materialização: um objeto voador, como um disco da antiga ficção-científica, que vigia os personagens à distância. A inspiração é evidente e ressoa num nome que influenciou profundamente os realizadores Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles: John Carpenter. Se em They Live (1988), o personagem de Roddy Piper, enquanto descobre a verdade, não compreende realmente a natureza do objeto que o vigia, embora saiba que não é de boa índole, Bacurau é menos inocente ou mais cruel: o perigo é evidente e os personagens sabem-no, compreendem-no. É um objeto inorgânico, estranho àquele mundo, que obedece justamente a esse exercício de internalidade e externalidade. Por isso, a determinado momento, Damiano alerta Plínio para a circulação de um objeto que, ainda que parecendo um disco voador da velha ficção-científica, é inequivocamente um drone.
Nessa relação entre o dentro e o fora, Bacurau afirma a sua regionalidade – ou a sua natureza (do) interior. Ainda sobre a música que Gal Costa canta na abertura do filme, diz a letra: minha paixão há de brilhar na noite, no céu de uma cidade do interior. E acrescenta: como um objeto não identificado. Bacurau não tem vergonha de ser o que é, de onde é, como é. É uma cidade de resistência, sabemo-lo, quando os habitantes viram as costas ao seu governante que os vê como um registo demográfico ou uma estratégia eleitoral; mas será também uma cidade de luta e não é coincidência que, naquele pequeno povoado, o maior orgulho dos seus habitantes seja o museu que imortaliza a história da região e dos cangaços, os bandidos indomáveis do sertão. Um museu que não é um ponto turístico, mas um ponto de essência, de agregação, de afirmação de toda uma cultura paulatinamente engolida pela política universalizante, pela globalização, pelo exterior. Em Rio Bravo (1959), o Xerife, interpretado por John Wayne, recusa-se a sair da sua cidade, alegando que o perigo está lá fora, sabendo que a resistência, a resposta ao ataque, se faz de dentro; em Bacurau a forma é a mesma, mas o filme utiliza-a para desenvolver uma alegoria política poderosíssima e fortalecer a identidade dos que resistem, muito mais do que para motivos estritamente narrativos. E não há interior mais interno que aquele museu, como uma casa colonial tomada por invasão de armas e fotografias com sotaque, aquele coração e pulmão, boca, ouvido, cérebro nervoso da própria cultura.
Esses dois pontos, o fortalecimento da identidade do povoado e a alegoria política de um país à venda, são difíceis de se separar por conta da relação constante que o filme estabelce, como em Hawks, sobre o que significa ser e estar dentro ou fora. Não é que esses pontos não existam um sem o outro; mas, colocados frente a frente, como no brilhante encontro entre Sônia Braga e Udo Kier, as diferenças entre os mundos de que Bacurau fala tornam-se impreteríveis. Tudo trabalha para afirmar essas diferenças e talvez seja neste campo que ao filme falta alguma contenção e subtileza: não é que o filme não saiba ser subtil – é que, no delineamento dos contrastes, o esforço para tornar clara a mensagem subterra aquilo que a visualidade, as atuações e a própria natureza da história saberiam e poderiam dizer de outra forma. A intenção, por vezes, é clara, e tem que ver com os jogos de subversão no filme – o caricaturismo das personagens estrangeiras, por exemplo, como é usual no cinema norte-americano, aqui invertido -, mas permanece uma sensação de que alguns meios para construir esses contrapontos poderiam ser menos diretos.
Talvez seja esse o preço a pagar pela deliciosa natureza crua e feroz de Bacurau, visualmente extraordinário e portador uma marca identitária fortíssima – as cores saturadas, quentes, a música regional, os ambientes rurais -, que se reforça, novamente, pela oposição. Tudo o que foge a este padrão (e que está relacionado com a exterioridade) é de alguma forma estranho, é inorgânico, tem o peso de uma imposição, de uma invasão. O disco voador (mais deslocado que em They Live, que se passa na cidade) é apenas o começo. Como na antiga dualidade dos índios e cowboys, polos que se repelem, corpos estranhos um ao outro, Bacurau pinta um quadro de amor ao que é seu, às suas paisagens e às suas músicas, aos fantasmas da sua cultura, à sua gente. E falar de índios e cowboys não é coincidência – Bacurau é um western moderno, que carrega referências imensas de grandes nomes como Sam Peckinpah, Sergio Leone, Howard Hawks ou Akira Kurosawa. É um filme que nasceu da cinefilia dos criadores e de um espírito que, como em The Wild Bunch (1969), sendo externo à narrativa do filme, se entranha nela, percorre o seu interior, marca-a e faz dela algo maior. Seria ingénuo falar de um Bacurau fora do Brasil de hoje, como seria falar da obra maior de Peckinpah fora do contexto da guerra do Vietname: houve e há algo terrivelmente, profundamente alterador na realidade lá fora que se reflete cá dentro, nos filmes. Mas é um acumular dos tempos, uma história ao mesmo tempo contada e por contar. Por isso, Bacurau não é só uma soma de partes, de referências, de ficções; por isso, a herança de todos os trabalhos cujo peso carrega não o torna menos original. Este western sci-fi do sertão, brutal, engraçado, tropical, mobilizador, está intimamente ligado pela própria mitologia que cria: e o último ato, em que o filme suspende praticamente toda música para dar lugar aos sons do povoado ou ao silêncio fúnebre consciente da sua própria violência, é a concretização dessa criação mitológica, dessa enorme e íntima vida que, materializada no seu museu, como um âmbar , nos mostra que a história de uma comunidade, de um povo, de um mundo, não se estende só para trás.
Neste conjunto de referências e nesta mitologia própria, Bacurau apresenta o seu maior exercício de subversão. Aqui, já não é sobre alterar os moldes do género, mas sobre conciliar o aparentemente inconciliável. À marcante filosofia de Glauber Rocha – que Bacurau bombeia como sangue, na apologia da resistência, na afirmação identitária, na inversão da tipologia do local e estrangeiro -, o filme junta a apropriação de fórmulas de múltiplas variações do cinema norte-americano e italiano e de múltiplas referências. Falar-se-ia de culpa ou incoerência se não fosse justamente esse o objetivo de Bacurau: mostrar como a linguagem do cinema, mesmo com cartão de cidadão, pode ser utilizada noutras perspetivas, noutros cenários, doutras formas (e que país melhor para consubstanciar essa fusão tórrida de elementos que o Brasil?). Os realizadores não escondem a influência do western spaghetti ou do inovador cinema do George Romero (a que John Carpenter muito eludiu) – pelo contrário, exibem-na, dão-lhe dimensão, pimenta nordestina e cheiro de guisado, poeira quente e luz abrasadora do sertão. Talvez possa ser visto como um ato de justiça, de compensação, que mostra como as exclusões, caricaturas ou preconceitos de um género não lhe são inerentes: são opções. Na narrativa do cinema, o lado de cá ou de lá é sempre uma construção, tão válida como outra.
Bacurau respira, assim, melhor. É um filme, na linguagem do coaching, descomplexado, resolvido, honesto consigo mesmo. Sabe o que tem de justificar e o que não tem, sabe a quem deve e o que deve. E se o filme aceita a estranheza da sua própria mitologia cultural, na forma do aparecimento de um fantasma, aproveita a extraordinária música de John Carpenter e a sua herança, entre outras coisas, na fantástica cena de transição à noite, em que as crianças se deslocam progressivamente para a escuridão do desconhecido, perante um apagão saído do Assault on Precinct 13 (1976), conforme o filme se movimenta lenta e progressivamente para o perigo do exterior. A esse inimigo desconhecido, a resposta é só uma: como em Seven Samurai (1954), o combate. Assim é Bacurau, como o Brasil: gigante, múltiplo, misturado, uma linda amálgama total. Um filme grande, grande o suficiente para, falando do seu mundo, falar de tantos e tantos outros. É resistente, é carnívoro, é uma mistureba deliciosa; é o silêncio que atordoa e o grito desumano para se ser escutado, é este Brasil e o Brasil de tantos outros tempos, pardo, impávido, injusto, divertido, feroz. É bom demais.
E que melhor metáfora para descrever a substância sem nome de que se é feito, como dizia Saramago, do que o poderoso e inexplicável psicotrópico? Embalados pela resistência, restam as últimas palavras de Bacurau, escutadas na voz de Geraldo Vandré: Vim aqui só para dizer, ninguém há de me calar. Se alguém tem que morrer, que seja para melhorar. Tanta vida para viver, tanta vida a se acabar.
Francisco Fernandes
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