A FORMA DA ÁGUA (2017)
«Se falasse sobre isso… Pergunto-me o que lhe contaria», confessa o narrador nos primeiros minutos de A Forma da Água (2017). «Falar-lhe-ia sobre o tempo? Ou falar-lhe-ia sobre o sítio? Ou talvez, não sei, falar-lhe-ia sobre ela — a princesa sem voz?» Comece-se a partir disto: a indeterminação. E saiba-se isto: este é um conto de amor. Poderia o filme começar, como por tantas décadas foi usual, sob Era uma vez. E começaria bem, refém da mesma indeterminação de quem não consegue posicionar no dédalo do tempo aquilo que é intemporal. Porquanto intemporal são — e sempre foram — o amor e o ódio.
A Forma da Água é o último filme do mexicano Guillermo del Toro, vencedor da categoria de melhor filme na passada edição dos Óscares da Academia. Vitória que, não obstante o louvor, surpreendeu por ser atribuída a uma longa-metragem cuja classificação mais lata seria simples. E é, de facto, simples — uma história de amor, uma paixão proibida entre dois universos pessoais paralelos, uma mulher, uma criatura desconhecida e um vilão. É visível que Guillermo del Toro quis usar os arquétipos literários dos contos de fadas, que se popularizaram nos filmes de animação da segunda metade do século XX, para desenvolver essas bases imaginativas num contexto alternativo: neste caso, a Guerra Fria. Mas este cenário ao qual a história de amor se sobrepõe é substancialmente secundário, embora permita o desenvolvimento paralelo de alguns personagens. O âmago do filme, por ser da mesma génese daqueles contos que sustêm a sua estrutura criativa, está justamente na paixão entre dois corpos distantes e diferentes. A divergência celular reside na natureza destes corpos: não são dois seres humanos, como em A Branca de Neve ou Cinderela, nem um ser humano metamorfoseado, como em A Bela e o Monstro; para além do estabelecido, é uma mulher muda, Elisa (Sally Hawkins) e uma criatura (Doug Jones) que a biologia e a humanidade — a fisionomia humana — desconhecem. Se em A Bela e o Monstro a monstruosidade é uma sombra dissimulada de um corpo e uma consciência humanos (e que o monstro acaba por encontrar), em A Forma da Água a monstruosidade da criatura por quem Elisa se apaixona é individual, profundamente personalista, orgânica: por isso são tão notáveis as características répteis e anfíbias, quase estrangeiras, da criatura. Não há, portanto, resignação nem estoicismo; não se procura, muito menos se encontra redenção física daquele ser: tudo quanto é existencial, em A Forma da Água, é natural.
A Forma da Água assume, aqui, uma dimensão de estudo sobre capacidades; ou, de outra forma, sobre incapacidades que subjazem à principal e mais constatável: a mudez de Elisa. Também o Coronel Richard Strickland (Michael Shannon), oficial responsável pelo projeto de estudo da criatura, cuja detestável atitude se circunscreve à demonização e desqualificação da última, porta uma incapacidade — que, ainda que não superficial ou evidentemente diagnosticável, é mais impositiva, mais material: não sendo cego, o Coronel é, ainda assim, incapaz de ver. Cegueira fundada na fé: é um Homem de fé. Essa fé — como definiu Agostinho Silva — que é uma crença desprovida de matemática.
A incapacidade de produzir fala de Elisa é, portanto, puramente física; há uma exteriorização, um afastamento abismal entre a pessoa física e deficiente de Elisa e a sua perceção e extração do mundo (a sua pessoa não material), corporalizadas na música e no amor, no canto imaginativo e na paixão naturalmente muda. Mas o sonambulismo ígneo do Coronel, essa sua visão despida, essa clarividência despojada de lucidez, tem apenas um sentido: aquele que consegue tactear. Se então Elisa levita apaixonadamente sob a água, Strickland arde num alastrante e consumidor fogo interno — e ambos o fazem até que a existência se torne insustentável, mas por razões desviantes: a primeira, por causa do amor; o último, pelo ódio.
A Forma da Água é o abraço maior de Guillermo del Toro ao seu fascínio pelos monstros. E o realizador fá-lo, logicamente, na sua longa-metragem mais bela, onde faz também encontrar a singular cinematografia de Dan Laustsen, que entre tons sóbrios e frios reflete as qualidades anfíbias da história, a elegantíssima banda sonora de Alexandre Desplat e a irrepreensível direção de arte de Paul Denham Austerberry, Shane Vieau e Jeff Melvin. E assim tem a oportunidade de desconstruir totalmente o que se compreende por normalidade dentro do género e da temática e de evitar o julgamento, abrindo espaço para a prevalência exclusiva do sentimento.
A simplicidade do filme revela-se no que é por trás do que aparenta ser. Talvez a sua maior virtude seja ser menos adjetival e mais substancial: importa sobretudo o que é, a natureza do ser, mais do que a razão. Não se fala no filme da normalidade da relação apresentada: não cabem qualificações ou julgamentos, porque a beleza reside na naturalidade. Na natureza da situação. Ou como o narrador diz no início, na «veracidade destes factos». Não é de estranhar, assim, que a fórmula final seja invertida e seja a penitência humana resgatada pela estranheza do indefinido, da monstruosidade orgânica existencial e, portanto, natural. Reside em A Forma da Água uma força de beleza muito grande.
Francisco Fernandes
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