À espera dos vermes
The Wall (1982) de Alan Parker |
Em 2021, o célebre The
Wall fará 42 anos. O décimo primeiro álbum de estúdio dos Pink Floyd, lançado
em 1979, é quase tão jovem (embora muitos anos tenham já passado) quanto a
nossa democracia — e mais jovem ainda é o filme que dele foi feito, por Alan
Parker, em 1982. As palavras de Roger Waters, escritas e cantadas num tempo em
que o fascismo camisa-preta de Oswald Mosley tinha ainda terreno na sociedade britânica
e em que as políticas tatcherianas se preparavam para avançar triunfalmente
sobre o leite e a escola pública, não foram tanto uma sentença — como melhor
teriam sido —, do que a denúncia de um passado, o diagnóstico de um presente e a
narração inadvertida de um porvir.
The Wall fala, pois, de um
pai que nunca regressou da guerra e de um filho que nunca regressou de si.
Talvez seja este um bom ponto de partida: a impossibilidade de regresso. Entre
tantas outras coisas, The Wall é a viagem ao íntimo de uma pessoa cuja empatia
se perdeu com a perda daqueles que tinham como função a sua transmissão. É,
portanto, uma viagem à distância — a distância de um sujeito que permanece longe
do meio social, primeiro pela ausência do pai, depois pelo controlo total da
mãe, pela disciplina da escola, pela futilidade das relações que estabelece.
Pink, o nosso protagonista, adaptando a célebre sentença de Jean-Luc Godard,
não é um homem só; é só um homem. E, nessa condição, tudo, como o seu século provou,
é possível. É, portanto, justo dizer que The Wall é a viagem ao íntimo de um
homem frágil, distante, que não compreende mais do que não é compreendido,
esmagado pelos «espaços vazios» de uma vida que preenche com esse muro, a
metáfora final para a impossibilidade de regresso e, antes, de acesso. Assim se
despede Pink do «mundo cruel», construindo paredes altíssimas para não ver e
não ser visto, para não ouvir e não ser ouvido, com, cada dia, «mais um tijolo»
que a história, na forma da guerra, a mãe, na forma da clausura, a escola, na
forma da subordinação, e ele próprio, em sua própria forma, vão oferecendo. O
muro que dá nome ao álbum não é só a imagem desse homem distante e isolado em
si, mas também, necessariamente, do tempo e do espaço que esse homem, como
tantos a si semelhantes, quererão construir.
O ponto de viragem fundamental
na vida de Pink — se considerarmos a ideia de construção do muro como um longo
processo temporal, talvez anterior a si — é a descoberta da natureza política do
seu mundo. Esse homem «velho», para quem «nada mais é divertido», que se tornou
«comfortably numb», desperta perante
a impressão física, palpável, imediata da ação política; e então o muro, que
media a distância entre si e o outro na vida social, passará a medir essa
distância politicamente. The Wall diz-nos, assim, que toda a psicologia latente
na primeira parte resultará, como a recorrente adaptação de músicas, na
construção do animal político da segunda.
E esse animal político,
Waters mostra-o sem problemas, é o fascista. Pink, já por trás do muro, diz-nos
que tem uma «forte urgência para voar», «mas não tem para onde ir». Enfim o
descobre, na imagem de um pensamento político radical, violento, desumano, nessa
explosão interior de uma vida volvida no afastamento e na indiferença. Como em O Conformista (1970), de Bernardo
Bertolucci, a figura do fascista não é um demónio vazio ou a incorporação
daquilo que podemos tomar como o mal (embora muito perto deva estar), mas a
consequência de um indivíduo tomado profundamente pela sua natureza individual
— e, portanto, sem empatia. Tanto O
Conformista como The Wall darão redenção aos seus protagonistas, nesse ato
de humanismo fundamental que teria necessariamente de concluir a sensibilíssima
construção da psicologia humana a que se propõem; mas isso não ocorre sem julgamento.
E o julgamento que ambos fazem é tanto o da sociedade, como aquele por que,
interiormente, os protagonistas estão obrigados a passar. Isto é dizer que
Waters e Bertolucci destroem os seus fascistas pela criação de consciência:
consciência de quem são, do que foram, do que fizeram e, principalmente, do que
os levou até ali.
Quarenta e dois anos
depois de The Wall, cinquenta e um de O
Conformista, o que nos levou até
aqui? Ouçamos, novamente, as palavras de Roger Waters. A radicalização de Pink
pela política dá lugar aos segmentos musicais mais bruscos. A melancolia comum
da primeira parte, o desespero nas vozes que cantam a distância do
protagonista, deixam de existir, substituídos pelos sons radicais do discurso
político dos camisas-negras. Discurso messiânico, claro está, porque nunca
movimento semelhante o foi sem designação expressa da providência. E discurso
histórico, disciplinado, militarista, das grandes causas. Na música Waiting For The Worms, a expressão total
do radicalismo político em The Wall, a voz de Waters pergunta-nos: «Queres ver
a Grã-Bretanha a governar novamente, meu amigo? / Tudo o que tens de fazer é
seguir os vermes». Seguir os vermes pelos quais Pink, em «perfeito isolamento», por
trás do seu muro, tanto tempo esperou; vermes que, tomando o corpo de ideias e
preconceitos, regurgitados por figuras públicas duvidosas e líderes políticos
efervescentes, se vão infiltrando no tecido social vulnerável, pobre,
desempregado, desinformado, sem respostas, e nas mentes frágeis, distantes,
isoladas, ladeadas de muros, que o constituem. Esperar pelos vermes não é só o
ato político por excelência do radicalismo, é a sua condição fundamental de
existência. É a invasão da indecisão pelo discurso decisivo, da indiferença
pelas grandes certezas, do medo pela segurança, da cobardia pelas verdades
absolutas — da madeira velha pelo caruncho. Isso nos explicaram The Wall, O Conformista e tantas outras obras, da
ficção à ciência política, de vários tempos. Mas não nos explicaram tudo,
porquanto parte do nosso tempo a nós cabe interpretar. O isolamento, a distância,
a ausência de empatia, a incompreensão, o erguer dos muros sempre lá estiveram,
disponíveis como sempre, à espera dos vermes; preciso é dizer, mais do que
nunca, quem os libertou.
Ou então as palavras de Jonas Mekas: «No fim, as civilizações morrem por ouvirem os seus políticos e não os seus poetas.»
Francisco Fernandes
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