12 ANOS ESCRAVO (2013)
Texto originalmente publicado no jornal Ponto & Vírgula da Escola Secundária Engenheiro Acácio Calazans Duarte (2014-2017)
«É mais difícil ser livre do que puxar a uma carroça. Isto é tão evidente que receio ofender-vos. Porque puxar uma carroça é ser puxado por ela pela razão de haver ordens para puxar, ou haver carroça para ser puxada. Ou ser mesmo um passatempo passar o tempo puxando. Mas ser livre é inventar a razão de tudo sem haver absolutamente razão nenhuma para nada. É ser senhor total de si quando se é senhoreado. É darmo-nos inteiramente sem nos darmos absolutamente nada. É ser-se o mesmo, sendo-se outro. É ser-se sem se ser. Assim, pois, tudo é complicado outra vez. É mesmo possível que sofra aqui e ali de um pouco de engasgamento. Mas só a estupidez se não engasga, ó meritíssimos, na sua forma de ser quadrúpede, como vós o deveis saber», escreveu Virgílio Ferreira em Nítido Nulo. A liberdade, que hoje é tomada como um direito inalienável e axiomático, foi, durante muito tempo, um problema. Um problema pelas pretensões de restrição, pela repressão ideológica, racial, social, pela cativação do espírito humano e da sua manifestação. Mas também pela vontade individual, e pela sua recusa, que fez tantos homens ao longo da história tropeçarem na sua restrita extensão de liberdade. Para estes, foi uma conquista árdua, uma luta tão intensa que se assemelhava mais a um dever forçoso do que a um direito. É esta a história do filme 12 Anos Escravo de Steve McQueen, vencedor do prémio de melhor filme nos Óscares de 2014, inspirado na autobiografia homónima de 1853 escrita por Solomon Northup.
Chiwetel Ejiofor interpreta Solomon Northup, um violinista afroamericano que habita em Nova Iorque com a sua esposa e com os seus filhos e que, em 1841, é raptado por dois homens e enviado para uma propriedade para ser vendido como escravo. Northup considerou-se sempre um homem livre e, ainda que cidadão numa sociedade esclavagista, conseguiu pelo trabalho e pela sua arte preservar a liberdade. Mas tal como incontáveis homens da sua época e de anteriores foi vítima das maiores vilezas perpetuadas pelo ser humano. 12 Anos Escravo, na sua missão biográfica, transcende-se por ser fatalmente real. A ficção é o transporte de uma mensagem, mas a biografia histórica é singularmente impactante e penosa. É a transformação de uma história numa existência, numa vivência, numa tragédia. Não obstante, a vida de Solomon Northup que aqui é contada é muito maior do que os dolorosos anos que viveu: é a vida de um grupo colossal de pessoas que, forçadas, arrastaram por séculos uma condição de submissão e de coação, que experienciaram o mundo sem conhecer a liberdade.
O filme, que conta com um grupo de atores prodigiosos (Lupita Nyong'o, Michael Fassbender, Benedict Cumberbatch, Paul Dano, Brad Pitt), urge em ser um filme importante. Os assuntos de que trata são uma ferida americana que ainda não sarou, e 12 Anos Escravo, num estilo declaratório e de exercício de memória, serve para manter acesa a chama contra a aquiescência do terrível passado que relembra. E nesse exercício de memória, o filme é um elogio à liberdade do espírito humano para ser por si só. Northup, depois de preso e escravizado, compromete-se estoicamente a voltar a ser livre e, na sua missão de abnegação, caminha resiliente durante 12 anos nos pântanos emprisionados pelo homem para a alcançar. Porque só ela conta, a liberdade e o amanhã. Para o espírito, isto é tudo. Isto basta.
Mas 12 Anos Escravo tem a sua mais valorosa característica na forma como aborda o tema da escravidão e da falta de liberdade. Em momento algum a longa-metragem de Steve McQueen trata a hitória de Northup com sentimentalismo exagerado, ou propositalmente emocional, ou mesmo com pena. A única forma de realmente contar esta história é através da translação da brutalidade e da ausência da análise consciencial — e é por isso que McQueen tem tanta autonomia para expor folgadamente as maiores vilanias que eram cometidas contra os escravos americanos e a justificação (invariavelmente bíblica) para elas, sem, ainda assim, as sentenciar. Há muito pouca consciência nas almas dos homens da história, mas muita alma na consciência deste filme. Toda a história, toda a emoção que dela advém, todo o sentimento penalmente presente e todo o exercício de justiça são entregues ao espectador. 12 Anos Escravo é raramente chocante e gráfico, mas tem uma monumentalidade de impacto única. Ainda que não banalizando a violência, ela existe sobretudo no âmbito da própria consciência de quem o vê e de quem o quer conhecer. De quem quer, mais do que sobreviver, viver. De quem tem coragem de aprender que ser livre é difícil, é árduo, é dar-se inteiramente sem se dar absolutamente nada. É ser-se sem se ser. É sofrer aqui e ali de um pouco de engasgamento. É, muitas vezes, tropeçar. É levantar-se do chão, lutar, deixar o passado, olhar o horizonte, caminhar intrépido para a liberdade, o amanhã é já ali.
Francisco Fernandes
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