CARTAS DA GUERRA (2016)


Texto originalmente publicado no jornal Ponto & Vírgula da Escola Secundária Engenheiro Acácio Calazans Duarte (2014-2017)


Num cartaz propagandístico do pós-guerra, a União Nacional alardeava, em tom eleitoral, o isolacionismo português e o valor da vida: «Mulher portuguesa: se o teu noivo não foi morrer em terra estranha, sob as tempestades de ferro e fogo e podes constituir um lar feliz e tranquilo, a Salazar o deves!» Vinte anos depois, Portugal mergulhava na lúgubre penumbra do conflito humano, numa guerra que duraria treze anos, e de onde surgiu um conjunto singular de correspondência dirigida do então médico António Lobo Antunes à sua esposa. Em 2016, Ivo M. Ferreira lança a adaptação para o cinema da monumental obra de cartas no que é um dos mais relevantes acontecimentos cinematográficos portugueses dos últimos tempos.

Angola é o cenário de Cartas da Guerra. Embora o cenário pudesse ser outro. A longa-metragem, que se estende numa estrutura epistolar, acompanha o jovem António Lobo Antunes, médico no exército português numa das mais violentas zonas da Guerra do Ultramar. Arrastado do seio da sua família, da sua cidade, da sua esposa, naufragado na violência daquele conflito tropical, tal como milhares de outros homens da sua geração, António — como assina todas as cartas — encontra sobrevivência apenas na correspondência que troca regularmente com a sua esposa. Há algo muito humano nisto; na manutenção da vida pela recordação ou pela presença dissimulada. Seja em fotografias pregadas à parede, ou num isqueiro oferecido pelo pai que um soldado português desesperadamente procura, Cartas da Guerra é muitas vezes uma análise à resistência do ser humano. Europeus e jovens, aqueles homens percorrem sertões inóspitos e longas planícies onde a terra sáfara se confunde com o baixo céu, e não é de admirar que o filme seja a preto e branco. A ausência de cores é, em todos os aspetos, a reflexão ascética e física do filme — é um estado de espírito, a mortificação da existência, mas também a amplificação dos sentidos e da beleza fotográfica de uma África imponente. Se o primeiro se deve sobretudo à morbidez do material escrito e das interpretações, a segunda assenta no belíssimo visual do diretor de fotografia, João Ribeiro, e na captação cinematográfica de todo o turbilhão natural do indomável continente negro invadido, como no altissonante Apocalypse Now, pela beligerância humana. 


E embora incontornavelmente mórbido, Cartas da Guerra exalta uma voluptuosidade muito fértil. As cartas lidas pelas vozes de Margarida Vila-Nova e Miguel Nunes, os principais atores, são de uma essência literária por descobrir. Oscilam entre o amor ardente e o desespero palpitante, entre a loucura física, carnal, pestífera, e o sentimento rasgado pela raiva da guerra. E é aqui que reside o âmago do filme; porque África é bela e vasta, mas há algo assombroso na humanidade derramada por estas cartas. Ivo M. Ferreira compreende isso e guia um filme que sabe quando se calar, quando falar e quando gritar, que nunca chora, mas que sofre numa tristeza profunda de ausência e de incerteza dos jovens soldados e do homem apaixonado. 

Além de humano, há algo também muito português neste filme. A guerra, essa criatura que se arrasta serpenteantemente como os longos rios africanos, é um monstro universal. Vai e vem, apátrida, conforme os tempos, conforme as febres. Não havendo, contudo, espírito na guerra, há-o nos homens que a lutam. Sob o pôr-do-sol, escuta-se uma última vez a voz de António num suspiro penoso de saudade, que clama por voltar a casa. Talvez seja essa a sua tragédia em Cartas da Guerra — uma profunda consciência, por vezes inebriada pela saudade portuguesa, neste mundo de cólera. Neste mundo carnívoro onde, como escreveu Saramago, «se diz amor sem saber o que seja e são brinquedos as bombas de napalme».


Francisco Fernandes

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