OS SENHORES DA GUERRA (1985)
Texto originalmente publicado em 2018 na revista Capicua73 (www.capicua73.wordpress.com)
«A meia-noite é tensa e silenciosa», principia Walt Whitman no trigésimo sexto poema do seu Canto de Mim Mesmo. Pelos livres versos que o compõe, Whitman descreve de forma crua e seca a tenebrosa visão de um cenário de guerra. Do «rosto morto de um velho marinheiro», das «pilhas informes de corpos e mais corpos» e dos «pedaços de carne nos mastros e nas vergas», dos «negros canhões impassíveis», dos «pacotes de pólvora espalhada» e do «odor penetrante», «apesar de todos os esforços», sobem as chamas que «continuam em cima e em baixo» e nada permanece senão o caos. A guerra é caos, e nenhuma descrição de um cenário bélico, ou da própria guerra, poderia terminar nalgo que não o fosse. Daí o título original de Os Senhores da Guerra (1985), o último grande épico de Akira Kurosawa — Ran. Palavra também crua e seca, facilmente confundível por anglicismo, mas que em japonês significa, literalmente, caos.
Kurosawa, um dos maiores cineastas japoneses, inspirou-se na peça Rei Lear, de Shakespeare, e nas lendas de Mōri Motonari, um poderoso dáimio — ou senhor feudal — do século XVI, para desenvolver a história contada ao longo dos 162 minutos da longa-metragem. Se as lendas do dáimio conferem ao filme uma dimensão histórica própria, Shakespeare, evidentemente exógeno, traz à história uma natureza trágica singular. Curiosamente, os estilos encontram-se e obtêm a sua melhor proporção no uso das técnicas do tradicional teatro japonês Noh, que, através de longos e tensos períodos de silêncio, de ausência de movimento, e de interpretações, em contraste, absolutamente abruptas, eleva a tragédia inerente ao teatro shakespeariano a um plano funcional muito longínquo da Europa medieval.
À semelhança da história de Rei Lear, em Os Senhores da Guerra, Hidetora Ichimonji (interpretado por Tatsuya Nakadai), o poderoso Senhor da casa Ichimonji, dominante na região, decide, perante a velhice, conceder o poder que detém ao seu filho mais velho, sob condição de manter o seu título e relevância no panorama governativo. Como na peça de Shakespeare, a decisão do soberano revela as fragilidades dentro da família e serve como principal catalisador para a exploração dos temas do poder, da guerra, da traição e, no limite, da natureza humana.
A essência do teatro tradicional marca não só a abordagem à interpretação de certas personagens, mas é também característica substancial da atmosfera do filme. Não só concede, portanto, essa sensação de endógeno a algo estrangeiro – atribuindo nacionalidade nipónica à tragédia inglesa -, como marca o ritmo da história, sobretudo no que às relações humanas de poder concerne. A sobriedade do teatro Noh, muitas vezes cerimonial, a violência das palavras, o ódio comprimido nos olhares e nos gestos, libertado na abruptude, tudo é sombra da grandeza destrutiva e caótica de Os Senhores da Guerra. Kurosawa quis um épico – fê-lo -, mas não ignorou a raiz dessa dimensão: o homem. E porque a guerra é um produto humano, ultrapassa-o em tamanho, esmaga-o em consequência; mas é fruto das suas pequenas relações. A compatibilidade da tragédia shakespeariana com o belicismo épico reside, justamente, no facto de que a altissonância da guerra emana da cerimónia, da violência das palavras, do ódio comprimido e libertado.
A notabilidade de Os Senhores da Guerra estende-se, naturalmente, ao plano visual. A cinematografia, acompanhada de um rigoroso trabalho de figurino, capta as duas dimensões do filme, encontrando o ritmo e a atmosfera para o homem e para a guerra. Os planos imóveis, de movimentos lentos e ponderados, geralmente sem ou com pouquíssimos cortes, em que se alongam as palavras, contrastam com a sucessão de planos em movimento, frenéticos, pesados, galopantes, em que Kurosawa projeta notavelmente o conflito humano. Abundam ainda os planos longínquos das planícies, dos montes, do céu que desce sobre a terra. E se quando filma a guerra, Kurosawa opta por a tornar na imagem maior, quando o homem é posto ao lado da natureza, torna-se pequeno: a terra alonga-se, o céu transforma-se numa muralha, a bruma engole-o. A proporção natural das coisas é fundamental, e ainda que os exércitos consumam os planos pela grandeza e força dos números, quando posto em perspetiva com as montanhas japonesas, o homem torna-se novamente pequeno; mesmo que, como no exército de Hidetora, um soldado valha por cem.
Os Senhores da Guerra poderia ser somente um épico de guerra, com fundo histórico e notável valor cinematográfico, mas a profundidade que Kurosawa alcança deve-se ao seu trabalho de personagens, ao estudo das suas relações e comportamentos, à reflexão acerca do poder e da traição. As palavras não ganham guerras, diz um general no último ato do filme; não ganhando, criam-nas, ateiam fogos, derrubam exércitos, destroem mundos. Num formato estritamente épico, apresentar-se-ia o caos da guerra fundamentalmente como consequência. Kurosawa tenta mais – tenta explicá-lo, dar-lhe natureza, fazer compreender que o caos é não só o fim como a origem. Que dele só ele pode surgir.
Termina assim o trigésimo sexto poema do Canto de Mim Mesmo: «Arquejos, queixumes, o sangue que cai, breves gritos selvagens, longos gemidos / de desfalecimento, / Tudo assim, tudo irreparável.» O caos, como o fogo, estende-se consumindo; para trás ficam os despojos, o irreparável. Os Senhores da Guerra foi além de Shakespeare e concedeu outra dimensão à tragédia de Rei Lear. É uma experiência visual singular e um estudo interessantíssimo acerca do homem e da guerra. Sobretudo acerca dessa característica própria da guerra expressa em palavras por Walt Whitman e que Kurosawa sintetiza na última imagem do filme, talvez a mais poderosa: um cego, cuja visão lhe foi tirada pelo conflito, vagueia sozinho e perdido sobre as ruínas de um castelo que outrora fora seu. As nuvens negras encobrem o céu até ao fim, o sangue cai, espalham-se os gritos selvagens, o caos prossegue, e assim fala Os Senhores da Guerra sobre a irreparabilidade do mundo.
Francisco Fernandes
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