OITO E MEIO (1963)
Texto originalmente publicado em 2018 na revista Capicua73 (www.capicua73.wordpress.com)
Já alguma vez tentou encontrar a substância, ou — por rigor — a identidade de que a sua existência é feita? Para além das perceções, da dimensão física do corpo - a medula, o nosso tutano estrutural. John Locke sugeriu, no seu An Essay Concerning Human Understanding, que a identidade pessoal tinha que ver com uma consciência temporal, isto é, que a identificação que o Homem faz de si mesmo concerne à sua capacidade de se enquadrar no passado, no presente e no futuro de igual forma. Que somos nós por, em retrospetiva, nos identificarmos com quem somos, em pensamentos e ações. Locke defendeu que entregarmo-nos a esse labor, o de nos encontrarmos, seria fundamental para nos compreendermos. Entendeu isso também Federico Fellini, cineasta italiano, que viajou pelas águas elípticas da consciência no seu notável 8½.
Se conseguir essa identificação transversal se pode reduzir a uma questão de consciência de unidade temporal, compreender de que é feita essa unidade e por que razão subjaz ela, em tantos momentos de uma vida, às tempestades de identidade, aos desencontros, aos momentos de absoluto tédio ou profunda melancolia, é uma questão maior. No meio de 8½, o produtor de Guido Anselmi, um realizador que procura encontrar uma história para o seu filme, indica-lhe: «Quer narrar a confusão que um Homem traz dentro de si. Mas precisa de ser claro, inteligível. Caso contrário, de que adianta?». As palavras do Comendador, o produtor, funcionam, neste caso, como argamassa para reunir aquilo que 8½ melhor explora: os desencontros do Homem consigo mesmo.
Federico Fellini conta em 8½ a história de Guido Anselmi (interpretado por Marcello Mastroianni), um notável realizador que tenta encontrar a substância do seu filme rodeado de uma longa equipa técnica sem direção, de uma abordagem excessivamente crítica às ideias da longa-metragem, da pressão associada à entrega de algo sem valor. Tudo o que circunda a produção serve como curioso estudo para Fellini, que projeta a indústria em que trabalha numa tela manifestamente caricatural — abundam as análises críticas sem conteúdo, baseadas em alegações de ausência de conteúdo filosófico ou em desenquadramentos culturais, as desorganizações técnicas, essas de uma indústria que prioriza o adjetivo ao substantivo, as exuberâncias de produção. Guido quer fazer um filme que contenha tudo, tudo o que seja possível, tudo o que os meios técnicos e intelectuais permitam, tudo o que a cinematografia tolere, tudo o que o público esteja disposto a ver. E é nessa procura do total que Fellini encontra a sua mais relevante análise — a de que a totalidade é, no limite, a vacuidade, por força da ausência de honestidade. Isto porque, no que a contar histórias diz respeito, na literatura como no cinema, a honestidade consiste em falar do que se conhece, do que um Homem é feito. Fellini sabe-o e procura responder à sugestão do Comendador, explicar a confusão intrínseca ao Homem. Coloca em segundo plano a caricatura do universo do cinema, mergulha no surrealismo e encontra uma resposta muito semelhante à de Locke: se o âmago do Homem é a consciência de si mesmo, a honestidade associada à sua obra dependerá do grau dessa consciência, justamente porque a verdade autoral, o núcleo de uma obra, nada mais é do que a sombra substancial da identidade do seu criador. Na procura da totalidade — do absoluto — Guido fascina-se pelas almas e corpos que constituirão o seu filme, distrai-se, invariavelmente deixa a vida passar-lhe por trás como um rio de memórias perdidas, não compreende por que não encontra a essência da obra. E Fellini navega nesse rio, assessorando-se de analepses várias, para construir a consciência final do seu protagonista, essa consciência de que falava Locke e que Guido compreenderá em bom tempo — a substância não são as belas atrizes, os adereços gigantes, a sensibilidade da história ou a altissonância da cinematografia; são as pessoas da sua vida, que em sonhos ou recordações procura, é ele próprio. Porque só dele e delas se recorda no passado, só com eles se pode identificar, só a partir deles se consegue encontrar no tempo perdido.
Fellini concluiu, como Locke, que a identidade pessoal — o cerne da existência — reside não no corpo, mas numa consciência contínua. Por trás do tom muitas vezes cómico, do surrealismo difícil de compreender, 8½, ainda que criticando uma certa necessidade intelectual e filosófica do cinema, dá respostas para as questões que faz e que, eventualmente, possamos fazer a nós próprios. Ao melancólico Guido, uma enfermeira pergunta, no começo do filme, o que estava a fazer — «Outro filme sem esperança?». O encontro com a sua identidade é um ato de indulgência por parte de Fellini, que faz o seu protagonista reaver a lucidez pela sua própria mente, tal como 8½ o é para o seu público. Uma possível resposta para a pergunta do que verdadeiramente somos, e sobretudo um caminho para a encontrarmos no dédalo da consciência e da memória
Francisco Fernandes
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